O jazz e a bossa nova pelo violão de João Gilberto
João Gilberto é considerado o pai da bossa nova porque inventou a sua batida. Brincava com o ritmo como ninguém e, embora só tenha composto dois temas, há um antes e um depois do seu violão na música brasileira. Constituiu um marco, tanto pelas suas interpretações instrumentais como pelo seu jeito suave e baixo de cantar que vai beber ao jazz. O artista partiu mas ficaram os seus tempos e os seus ritmos. Por isso mesmo, vamos a fundo no violão de João Gilberto, porque a música ainda não parou.
Numa letra digna de ser estudada em qualquer universidade, tanto a nível do ritmo como pela forma como a metáfora é utilizada, Caetano Veloso descreve João Gilberto na sua magistral ‘Bossa Nova é Foda’ como sendo “O bruxo de Juazeiro numa caverna do louro francês”. E continua: “(Quem terá tido essa fazenda de areais?)/ Fitas-cassete, uma ergométrica, uns restos de rabada/ Lá fora o mundo ainda se torce para encarar a equação/ Pura-invenção/dança-da-moda/A bossa nova é foda.” De facto, se seguirmos as pistas deixadas por Caetano, depressa percebemos como tudo se encadeia. Juazeiro é, muito simplesmente, o município natal de João Gilberto, onde nasceu a 10 de Junho de 1931.
A caverna do louro francês pode ser, e muito bem, uma referência à remasterização, de 2009, de um conjunto de gravações caseiras do pai da bossa nova realizadas na casa do fotógrafo Chico Pereira, em 1958 – as tais “fitas-cassete” da letra – remasterização essa posteriormente feita pelo engenheiro de som francês Christophe Rousseau. E sim, confere, o engenheiro de som é louro. O resto torna-se mais simples para podermos interpretar. Consagrado como o inventor da batida da bossa nova no violão, João Gilberto foi também crucial para a sua difusão no mundo, muito em especial nos Estados Unidos, a par de Tom Jobim (o outro grande pai da bossa nova), com quem manteve uma produtiva parceria. E lá estavam ouvidos estrangeiros a ouvir um estilo de música que, muito legitimamente, fazia lembrava o samba e o sabor do Brasil, mas que era igualmente jazz e conseguia, até, invocar na memória sonora esse outro grande monstro conhecido como Chet Baker. Daí que a bossa nova é, também ela, toda uma profusão livre como só o Brasil sabe ser. Por isso mesmo, tanto americanos como críticos do resto do mundo se debatem para desbravar cada novo território do estilo.
Para toda esta nova equação que se tornou universal, muito contribuiu a parceria que o saxofonista norte-americano Stan Getz manteve com João Gilberto e Tom Jobim. O saxofonista – que já havia gravado em 1958 um álbum com Chet Baker, de seu nome ‘Stan Meets Chet’ – gravou, em 1962, ‘Jazz Samba’ com Charlie Byrd, que tinha regressado de uma digressão do Brasil. Nesse mesmo álbum, já constava uma interpretação de ‘Samba de uma nota só´, de Jobim, e do tema ‘Desafinado’, com composição de Jobim e de Newton Mendonça, mas lançado em 1959, no álbum de estreia de João Gilberto, ‘Chega de Saudade’. Os dados começavam a ser lançados para a verdadeira internacionalização. Logo aqui vemos um trio essencial formado: Tom Jobim, João Gilberto e Stan Getz. A tríade haveria de colaborar junta no álbum ‘Getz/Gilberto’, lançado em 1964, responsável pelo boom de ‘Garota de Ipanema’ (composição de Tom Jobim e letra de Vinicius de Moraes).
Antes de avançarmos, há aqui uma contextualização que tem de ser feita. A música brasileira sempre foi caracterizada pelo grande espírito de colaboração e de associação entre os artistas. Pelo que já foi exemplificado neste artigo, era comum, por exemplo, um artista renomado compôr um tema, outro escrever a letra, e esse mesmo tema aparecer, pela primeira vez, no álbum de um outro terceiro artista. Não havia nem há, igualmente, prurido no que diz respeito a realizarem-se novas versões ou interpretações das canções. No que diz respeito ao início da bossa nova, na sua multiplicidade e sem querer esquecer ninguém – há muito mais a ser dito e artistas para relembrar mas um texto é só um texto – poderá dizer-se que, entre os seus pais, João Gilberto ofereceu o seu violão (do qual já irei falar), Tom Jobim grande parte das composições que ainda ecoam na nossa memória e, por fim, o poetinha Vinicius de Moraes a sua lírica.
Foi quase este, em parte, o caso de ‘Garota de Ipanema’. A composição deve-se a Jobim e a letra a Vincius. A primeira gravação é de Pery Ribeiro, mas foi a versão gravada no álbum ‘Getz/Gilberto’, com piano de Jobim e voz de João e Astrud Gilberto (a sua esposa na altura) que teve mais ressonância a nível internacional. Várias versões se seguiram, sendo que uma das principais foi, sem dúvida, a de Frank Sinatra. ‘Getz/Gilberto’, com colaboração de Jobim ao piano e de Astrud, foi, desta forma, um álbum crucial para a bossa nova, para a sua veia jazzística, e fundamental, acima de tudo, para a sedimentação da glória do tímido João Gilberto. Getz vinha na senda de Charlie Parker e havia, como foi dito acima, colaborado com Chet Baker. O curioso é que se conta que João era, já, um grande fã de Baker. A comunhão entre violão, voz, saxofone e piano, nesse disco, não poderia ser a melhor e, a verdade, é que a história encarregou-se, com justiça, de fazer a boa música acontecer.
Os acordes de quatro notas de João Gilberto
Mas vamos ao início, que é onde tudo começa. O lado intimista típico da bossa nova, que reflecte a relação próxima do artista com o seu violão, deve muito a João Gilberto. O artista quase que sussurrava, em tom baixo, numa cadência de extrema delicadeza (própria do jazz), enquanto que o violão funcionava, em palco, como uma extensão do seu corpo. Era um verdadeiro artista, muitas vezes só com um instrumento em palco e, por isso mesmo, pelas falhas serem mais perceptíveis nos dedilhados ao vivo do que, por exemplo, numa banda de rock, a qualidade do som, para si, tinha de estar perfeita. Até por uma questão de respeito pelo público, reza a lenda que o som era levado mesmo a peito pelo artista, a ponto de se queixar, se fosse preciso, no meio dos concertos, se algo estivesse mal a esse nível.
Criador da batida dedilhada da bossa nova que ainda hoje gera discussões entre académicos e músicos para decifrá-la, a nível de ritmo há um antes e depois de João Gilberto na música. Constituiu, por isso mesmo, um marco, e é por essa razão que lhe é rendida a devida vénia. ‘Chega de Saudade’, o seu primeiro álbum, chegou em 1959, aos 28 anos, embora, nos início dos anos 50, já tivesse experienciado realizar algumas gravações. Foi sua decisão, no entanto, fazer um longo interregno e dedicar-se, por um extenso período, ao estudo do violão e harmonia musical. Mais eis que avançou para o seu primeiro álbum e um tema em especial, ‘Bim Bom’, chamou logo a atenção, sendo comumente utilizado para explicar a percepção musical do baiano. Há imensos estudos técnicos sobre isso mesmo mas, de forma sucinta, o que chamou a atenção nesse tema foi, sem dúvida, o jogo polirrítmico que João Gilberto protagonizou entre a sua voz e o violão. Polirritmia, já como o nome indica, é a utilização de várias estruturas rítmicas em simultâneo.
Enquanto que numa qualquer música é banal utilizar-se ciclos de tempo mais certos e cadenciados – na bossa nova e no samba em geral, por exemplo, pode-se utilizar mais a subdivisão dos tempos em quatro semi-colcheias -, o músico brincava com o ritmo e, num só tema, era capaz de usar e de realizar imensas variações dentro dessa divisão – é o que ‘Bim Bom’ personifica. Foi o próprio Tom Jobim que alertou para esse facto quando ouviu o álbum e o Brasil começou a dar-lhe ouvidos. Embora possa ser considerada inédita, essa noção de polirritmia também pode ter as suas bases nas rodas de samba, em que as pessoas se agrupam e fazem a sua música de forma mais livre e descomprometida. Se quiserem variar nos tempos, porque não? Por essa mesma razão, há aqui uma curiosidade importante a ser referida – uma roda de samba também partilha similitudes com o que constitui o cerne de uma jam session de jazz.
Outra particularidade e outra influência que João Gilberto bebeu das rodas de samba foi a utilização das mesmas marcações do instrumento surdo (caixa grande) e do tamborim. A marcação do surdo era utilizada no dedilhado e na marcação do tempo forte do polegar (o baixo); já a marcação do tamborim era utilizada nas três cordas puxadas, em seguida, em simultâneo. Ainda outra particularidade de João Gilberto, que se foi tornando mais premente ao longo do tempo, era a utilização estrita de acordes de quatro notas sem grande utilização de arpejos (o toque das notas de um acorde não ao mesmo tempo mas em separado), ou frases musicais de ligação. João Gilberto era tudo isto mas, essencialmente, era livre no seu toque e só ele para nos confundir e andar para trás e para frente no ritmo, nos tempos ou até, se o quisesse, também tinha a mestria de deixar a música em suspenso para seguirmos o nosso ritmo interno.
É de destacar como um só tema composto por João Gilberto, ‘Bim Bom’, gerou tanto interesse de estudo a nível de música. Mas, a verdade, é que não há assim muitas composições suas — daí a dinâmica entre o pai da batida da bossa nova e Jobim, por exemplo, ter sido muito importante. Ao todo, contou com 13 álbuns de estúdio e quatro ao vivo, mas além de ‘Bim Bom’ só há mais uma composição sua: ‘Hô-bá-lá-lá’.
Era de parcas palavras em público, amava o seu silêncio e era avesso à comunicação social. Talvez porque, como artista que era, sentia que havia sempre uma sensibilidade traída ou incompleta assim que traduzida em verbalização. Tal como Greta Garbo acabou isolada, João Gilberto já quase não saía de casa nem recebia ou falava com quase ninguém, principalmente nos seus últimos tempos de vida. Acabou por falecer aos 88 anos de idade, no dia 6 de Julho de 2019. A nível pessoal, além de ter casado com Astrud, relacionou-se, também, com Miúcha, a irmã de Chico Buarque, e com Maria do Céu Harris. Em relação aos seus filhos, ficaria para a história a interpretação ao vivo de ‘Chega de Saudade’ que fez com Bebel Gilberto (também filha de Miúcha e sobrinha de Chico Buarque), quando esta era ainda uma pequena adolescente. Tinha uma postura bastante delicada, embora Caetano Veloso nos relembre que a bossa nova não é ‘moleza’, pode ser dura e violenta. Mas Caetano, amigo, há maior tragédia do que ser-se delicado neste mundo? Deixa ser suave, que no corpo de um sensível também bate um coração.